Ferida aberta

15:57 Angela Fakir 1 Comments


Já faz três anos que, enquanto lecionava como professora substituta da rede pública municipal, testemunhei uma conversa entre diversos educadores. Era a hora do intervalo e nos encontrávamos na sala dos professores. O som das vozes e brincadeiras das crianças no pátio enchia o ambiente de barulho e euforia. A  sala não era grande, mobiliada por um armário de metal com livros e revistas, um banco de concreto  que percorria três das quatro paredes que compunham a sala no qual sentávamos todos e uma pequena mesa com a garrafa térmica de café, xícaras  e  biscoitinhos caseiro que uma professora havia levado. Naquela tarde quente, entre um gole de café e outro, um educador trouxe à conversa informal que já acontecia  a indagação: “Vocês ficaram sabendo da nossa ex aluna que foi esfaqueada?”
Todos sabiam, a atmosfera tornou-se instantaneamente outra.
A ex aluna estudara ali dos cinco aos onze anos de idade, da serie de educação infantil até o quinto ano. Havia frequentado todas as series que aquela instituição de ensino dispunha. Alguns professores ali a viram crescer, quase todos haviam sido seus docentes  em algum momento no decorrer dos anos em que frequentara a escola.
A menina de 12 anos havia sido espancada violentamente e golpeada no rosto e braços com uma faca por um homem que pagava a sua mãe para ter relações sexuais com ela. O agressor, um motorista de caminhão de nome e endereço desconhecidos, disse a mãe da menina que havia dado um corretivo na criança por ela ter tentado tirar dinheiro da sua carteira enquanto ele dormia.
Tanto quanto o relato dessa violência inumana me causou  dor e indignação a inversão de valores manifesta na fala de muitos educadores ali. Houve quem afirmasse que ela já era sem vergonha desde pequena, que as vestes e o comportamento que apresentava pouco tinham de inocência. Ouvi uma professora dizer que muita gente naquela comunidade sabia que a criança era molestada pelos parceiros da mãe desde muito pequena. Uma juntou sua voz ao coro de absurdos e disse que essas questões são como “briga de marido e mulher” e que se a própria família da criança não cuida dos seus filhos, ela é que não poderia cuidar.   Outra ainda, dizer que havia crianças que incentivavam os homens a tocá-las e que muitos homens na verdade eram levados pelos pequenos a cometer seus atos de violência sexual.
Houveram ali educadores que, assim como eu, discordaram com cada uma das crueldades ditas. Que se crianças apresentam um comportamento inadequado e faz uso de roupas erotizadas isso acontece por que a indústria do entretenimento e publicidade incentivam essa erotização da infância no intuito de comercializar uma infinidade de produtos desnecessários e até prejudiciais às crianças, baseados na lógica mercantilista da nossa sociedade de consumo que valoriza o lucro muito mais do que a dignidade humana. Que erra gravemente como ser humano e cidadão aquele que se omite diante do conhecimento de que uma criança de sua comunidade é molestada, tornando-se  cumplice da violência silenciosa imposta a essas vítimas. Que é ação ineficaz e covarde perante a criança esperar que suas famílias fragilizadas e desestruturadas resolvam sozinhas seus problemas. E, sobretudo, jamais, em hipótese alguma, deve-se justificar a ação do adulto agressor por uma suposta sedução exercida pela criança. A criança pode até procurar estar na presença do adulto  ( e muitas vezes o faz por apreciar a atenção dedicada por parte desse), pode mesmo sentir prazer com as carícias recebidas. Mas nada disso, no entanto, muda o fato de que essa vivência de sexualidade é violenta e nociva ao desenvolvimento infantil, a medida que impõe a criança questões e experiências que se encontram muito além da sua capacidade de compreensão e consentimento e que só acontecem baseadas em uma relação desigual.
Até hoje o homem que fez uso dessa criança, tampouco sua mãe que obtinha dinheiro para alimentar seu vício em drogas ilegais, foram punidos. É extremamente doloroso saber que não há nenhum indício de que esse crime vá ser julgado, e que provavelmente o homem que feriu de maneira tão violenta essa menina ainda faz uso de outras crianças para satisfazer sua sexualidade doentia.
É impossível não pensar na relação que existe entre a ocorrência e continuidade desse tipo de crime e o conjunto de idéias repletas de valores distorcidos presentes ainda em nossa sociedade. Incontáveis crianças passam por suas infâncias presas em uma realidade de sofrimentos por causa da inércia de uma população que se limita a manifestar sua indignação diante dos relatos de práticas de pedofilia e exploração sexual mostrados pela mídia com palavras vazias e inúteis proferidas diante da televisão.
Temos que ir além disso. Há que se buscar e divulgar conhecimento sobre os diversos aspectos que essa questão envolvem. Idéias e conceitos que culpabilizam a  criança não podem ser aceitos. A compreensão egoísta e equivocada de que a proteção da criança é  responsabilidade exclusiva de sua família não pode justificar nossa omissão diante desse mal. Até porque, não se engane, não há nada que possa justificar a ausência de ações que ajude a modificar essa realidade cruel. Portanto, conheça, lute, grite, aja, faça de nosso tempo um tempo de mudança...
A menina, depois de passar alguns dias no hospital para curar seus ferimentos mudou-se para a casa de um parente em uma cidade vizinha. Carrega em sua face a cicatriz da agressão e em sua alma uma ferida aberta que talvez nunca se feche.


Notícias Relacionadas

Um comentário :